quarta-feira, 27 de maio de 2009

O dia, a insônia e a maçã.

Amanheceu mais um dia. Ah, a insônia me corrói. Foi à cozinha, abriu a geladeira. Com uma mão ainda na porta e a outra na cintura, observou o que tinha lá dentro por minutos, como se não estivesse realmente enxergando, só vendo. Ah! Será que eu já comi aquela maçã? Agachou e abriu a gaveta de verduras. Lá estava ela com cara de fruta triste. Cara de que não agüentava mais estar lá. E nada podia fazer, afinal, era uma fruta. Olhou pra tangerina tão linda, sorrindo pra ela, com sua casca alaranjada quase fluorescente. Hm, tangerina com cor de laranja. Pegou. A velha maçã suspirou.

Foi pro quarto, acendeu a luz, ligou o ventilador. A noite tinha sido abafada. Estava quente apesar de ser inverno. Não havia vento lá fora, todas as janelas estavam abertas, podia sentir. Ou não sentir. Durante a tarde, o tempo permaneceu cinza. Ainda era muito cedo pra saber se seria um dia feio de sol ou um dia lindo de chuva. Jogou os restos da tangerina no lixo, sentou na cama, acendeu um cigarro. Ah, companheiro. Aproveitou o momento da primeira tragada olhando pro maço azul. Alcançou o celular e olhou a hora. Cedo.

Buscou o caderno, segurou a caneta e escreveu:

Amanheceu mais um dia.

Largou a caneta. Não adianta, não vai dar. Segurou a caneta e escreveu:

A insônia me corrói.

Largou a caneta. Foi à cozinha, abriu a geladeira. Agachou, abriu a gaveta de verduras. A velha maçã sorriu. Pegou o limão, o gelo. No armário do lado esquerdo da pia, a vodca. Em um copo baixo, espremeu o limão. Adorava o barulho que fazia o choque entre a vodca e o gelo. Bebeu dois grandes goles. Tonteou. Respirou. Três grandes goles. Respirou. Pôs mais gelo, encheu o copo até a boca, foi pro quarto. Acendeu um cigarro, segurou a caneta.

Levantou, ligou o aparelho de som com o cd que tinha dentro. Que bom, era isso que eu queria ouvir. Escreveu: O álcool me corrói. Não. Riscou. Escreveu: Amanheceu mais uma insônia. Riu. Não! Riscou, largou a caneta.

Deitou e ficou olhando pro teto girando, ventilador girando. Cabeça girando. Quase caiu da cama ao levantar bruscamente. Segurou o caderno, pegou a caneta e escreveu:

Amanheceu mais um dia e a insônia ainda me corrói. Eu bebo pra fingir não lembrar que nós não vamos mais ser. Agora entendi: acabou.

terça-feira, 26 de maio de 2009

"I hate you so bad when I love you".

- Eu te odeio.

- Eu também te odeio.

Por essa, ela não esperava. A verdade é que ela ainda o amava. Era um amor tão sincero e tão cheio que não cabia nela, transbordava. Eu também te odeio. Como assim? Intrigou-se. Será que ele tá falando a verdade assim como eu não tô? Preferiu não perguntar.

- Ainda bem.

- Eu acho.

- É mais fácil assim.

- Concordo.

Pô! Sentiu um mal-estar, um calor vinha da barriga, talvez do estômago, se misturou com o peito, passou pra cabeça. Ficou tonta. Tentou disfarçar, mas o choro veio como tempestade.

- Desculpa, é a TPM, sabe?

- Imagina, fica à vontade.

Nossa, nunca pensei! Enquanto chorava, o observava tentando encontrar sombras de dúvidas. Mas ele estava lá, parado, tomando seu café como se nada estivesse acontecendo. Não se mostrava perturbado nem aliviado.

- Quer ir lá em casa pegar tuas coisas?

Tão rápido? Não estava preparada. Achava que ele iria se declarar, que iria pedir perdão por tudo que já fez, que iria beijá-la como se, naquele momento, tivesse descoberto que ela era realmente o amor de sua vida. Mas não, só movia o braço direito pra levar a caneca à boca.

- Sim, pode ser.

- Então vamos que eu preciso trabalhar.

Pagaram os cafés separadamente dessa vez. A padaria não era longe do apartamento. Foram caminhando pela rua. O dia estava nublado, assim como seu coração. Ela não conseguia acreditar que estava mesmo acontecendo. O que era pra ser um recomeço estava perto do fim, muito perto, há um lance de escadas. Abriu a porta.

- Entra aí, pega lá tuas coisas. Vou tomar mais um café.

Fez o movimento afirmativo com a cabeça e foi. Deu uma parada no banheiro primeiro, precisava de um minuto pra pensar. Não é possível! Olhou-se no espelho: seus olhos já estavam vermelhos em volta, do choro. Preciso pegar minhas coisas e sair daqui! Escova dental, xampu, absorventes, escova de cabelo.

DVDs, CDs, fotografias. O cinzeiro vermelho, a capa dos óculos. O carregador do celular, o isqueiro roxo, o romance policial. O All Star jogado no canto do sofá, as pantufas de abelha.

Os brincos em cima da cômoda, as roupas dentro da gaveta. Jogava tudo dentro da mala como se estivesse atrasada ou coisa qualquer. O que mais, o que mais? Foi pra cozinha.

- Posso levar minha caneca?

- É tua, não?

Puta merda, grosso! Passou por ele, sentiu seu cheiro. Aquele cheiro só dele misturado com o perfume tão bom. Abriu o armário, pegou a caneca. Aproveitou e alcançou o copo de bolinhas vermelhas. O que mais?

Puxou-a bruscamente e a abraçou. Levou um susto, mas parou, olhou em seus olhos e sentiu-se segura, sorriu. Beijou-a lentamente.

- Põe a mala no chão pra não quebrar nada.

Pegou-a no colo e a levou pro quarto.


Deitada em seu peito, acariciando seu braço, confessou.

- Sabe, eu tava mentindo antes. Eu ainda te amo.

- É? Eu não.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Eu sofria.
Eu sou fria.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Sobre outro dia


- Eu não te amo mais.

Sentiu uma forte pontada no estômago. Sem deixar de fixá-la nos olhos, apalpou a mesa à procura dos cigarros. Em, aparentemente, um segundo, já estava soltando a fumaça. Sem deixar de fixá-la nos olhos, uma lágrima solitária correu em desespero para a maçã de seu rosto. Olhou pra garçonete, que naquele momento passava perto da mesa observando se lhe faltava algo.

- Me vê mais um café.

Tremendo como nunca havia tremido na vida, deu uma longa tragada no cigarro como se estivesse buscando nele o ar que lhe faltava nos pulmões. Num instante de raiva, soltou a fumaça naquele rosto perfeito, lindo como aquele nascer do sol no verão do ano passado no Rio de Janeiro. Viagem bonita. Acabou de ir pra lista de lembranças a serem esquecidas.

- Tu não vai falar nada?

Pensou em xingá-la, pensou em dizer que a amava mais do que qualquer pessoa que já havia cruzado seu caminho, pensou que nunca existirá uma pessoa tão cruel ao ponto de convidar alguém para um café e dizer que não o ama mais. Quis beijá-la loucamente.

- Tá tudo bem?

Espero que essa tenha sido uma pergunta retórica.
Olhou no fundo de seus olhos procurando uma pontinha sequer de dúvida. Pensou em convencê-la de que aquilo era errado, de que era o maior erro de sua vida. Mas não o fez. Estava paralisado, queria lhe dizer todas aquelas coisas bonitas que nunca teve coragem. Como sempre, ela o intimidava. Até na hora do adeus era fria.

- Desde quando?

- Desde quando o que?

- Pô...

- Ah... Desde semana passada.

Semana passada? Como assim “semana passada”? Amor tem prazo de validade? O café estava frio. Vai ver foi ela... Riu.

- O que foi?

Gargalhou. Teve uma crise de riso. Todos ao redor o olhavam como se fosse louco. Ria, ria e ria. Estava ficando louco mesmo. Ria, ria, ria.

- Pára.

- HAHAHAHAHAHA!

- Pára!

- AHAHAHAHAHAHAHA!

- Eu vou embora.

- Vai! Vai que é o que tu sabe fazer melhor!

Levantou, puxou-a do banco fazendo-a levantar também e a beijou. Beijou-a sabendo que aquele seria o último beijo deles. Enquanto a abraçava, acariciando suas costas, sentiu que se deixou levar pelo abraço e parou de resistir. Era ela que o estava beijando agora.

- Pára tudo.

- O que foi?

Olhou pra ela e sorriu.

- Tá de brincadeira?

- Como assim?

- “Eu não te amo mais”? Conta outra!

Olhou pra ele e sorriu.

- É. Eu pensei que fosse conseguir, mas tu sabe que não sou uma boa atriz.

Sorriu e a beijou, sabendo que aquele não seria o último beijo deles.

No dia seguinte, lá estava ele, sorrindo: mesma lanchonete, mesmo horário, mesmo banco da mesma mesa, segunda caneca de café. Ela, não. Ela estava atrasada. Uma hora e treze minutos. Deve ter perdido o ônibus. Duas horas e 17 minutos. Duas horas e 19 minutos! Sentiu uma forte pontada no estômago. E então percebeu, depois de duas horas e 23 minutos, que ela era uma ótima atriz.

sábado, 16 de maio de 2009

Diálogo cantante

- Digo que não ligo, mas não vivo sem você.

- O seu caso é o tempo passar.

- Eu era bem melhor, mas tudo deu um nó.

- Aponta pra fé e rema.

- Sem você sou pá furada.

- Teu choro não me faz desistir.

- Assim que quer, assim será.

- Se eu te troquei, não foi por maldade.

- Cala essa boca, que isso é coisa pouca perto do que passei!

- Um capricho essa rixa!

- É que eu já sei de cor qual o quê dos quais e poréns.

- O que eu queria, o que eu fazia, o que mais?

- Cansei de procurar o pouco que sobrou.

- Pois vá embora, por favor.

- Senta aqui, espera que eu não terminei.

- Quero dançar com outro par pra variar, amor.

- A gente ria tanto desses nossos desencontros.

- É bom às vezes se perder sem ter porque, sem ter razão.

- Ai, não fala isso, por favor.

- Ah, faça-me o favor!

- Faz tanta falta o teu amor, te esperar...

- Não há porque chorar por um amor que já morreu.

- Eu já não sabia mais como dizer que eu te quero tanto.

- Diz que é homem feito, sei não.

- Se quer saber, deixa estar. Eu quis te convencer, mas chega de insistir.

- Pois é, não deu.

- Vê se te alimenta. E não pensa que eu fui por não te amar.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Sobre um dia

Criou uma coragem que não lhe cabia e perguntou se precisava de ajuda.

- Não, estou bem assim.

Não insistiu e voltou pro seu canto no ponto de ônibus. O dia era mais um daqueles de congelar os ossos. A chuva era a mais forte dos últimos tempos. Mesmo assim, ela preferiu ficar lá. Mesmo assim, ela preferiu ficar lá, completamente molhada e tremendo de frio.

Ao entrar no ônibus, percebeu que não veio junto, como todos os dias. Olhou pela janela e a viu chorando. Apesar da cena que presenciou naqueles instantes, pôde ver o quanto era uma menina linda, tinha uma beleza que, provavelmente, não era vista por muitos. Chegou a pensar que, de todas as garotas que já se interessou, ela era, de longe, a mais linda.

Chegou no estúdio, largou a mochila no canto de sempre e foi ao banheiro.

- Bom dia, Clarice.

- Bom dia! Tudo bem com você, querido?

- Mhmm.

Incrível como os papos no começo do dia são automáticos. Pensou que, não, não estava tudo bem. Mas pra que ele iria dizer um não e gerar todo um questionário que, naquele momento, não estava preparado pra responder?

Enquanto esperava o computador ligar, não conseguia tirá-la do pensamento. O que será que aconteceu? Como vou começar o papo amanhã? Tomara que não esteja chovendo. O post-it alaranjado fluorescente colado no canto esquerdo da tela indicava por onde começaria o trabalho. Leu em voz alta como que se obrigando a fazê-lo. Chegou a abrir a página pra escrever o tal do e-mail pro produtor. Mas não conseguia tirá-la do pensamento. Será que ela vai falar comigo? Será que ela vai sorrir? Será que... Tomara que não esteja chovendo!

- Cara, preciso do trailer do filme pronto na quinta-feira. Fica ligado! Tô saindo agora pra uma reunião com o produtor, então, esquece o e-mail. Valeu?

- Mhmm.

Ele era mais uma daquelas pessoas que se dá melhor com as imagens do que com as palavras. Ficou aliviado. Até aquele momento ainda não tinha entendido porque pediam para ele escrever os e-mails. Sempre os escrevia com muita frieza, com somente o necessário e nunca se prolongou: curto e grosso, mesmo sendo um menino sensível. O trailer já estava pronto há dias.

Chegou mais cedo no ponto. Não tinha dormido na noite anterior. Era o nervosismo e a ansiedade que andavam com ele, lado a lado. Será que eu vou conseguir? Ainda bem que não tá chovendo. Lá estava ela, colorida. Sua calça jeans surrada, seu tênis sujo, seu casaco de lã vermelho, seu cachecol listrado. Hesitou, mas falou.

- Oi.

Nada. Será que ela ouviu?

- Oi, moça. Tá melhor hoje?

- Como assim?

- Ah. Não sei. Tu não parecia bem ontem. Mas... não sei.

- É. Então não pergunta. Valeu?

- Mhmm.

Canto do ponto de ônibus. Dor no peito. Frio na barriga. Dor no peito. Cadê o chão? Dor no peito. Puta merda, guria, qual teu problema?! Voltou pra casa, ligou pro trabalho dizendo que estava com febre, achava que era gripe. Mas não: era coração partido mesmo.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Aquela nossa música

De longe, pude vê-lo encostado em uma árvore à beira-mar.

O céu, sem nuvens, tinha como cor um azul particular. Mistura de anis com anil. O mar parecia dançar ao som de Marcelo Camelo. Calmo e poético, com poucas ondas. Sua cor azul marinho se confundia um pouco com o céu e contrastava bem com a areia fina e branca. O vento não era forte, mas, naquele dia, tornou o verão uma estação agradável. Mesmo de onde eu estava, pude ver a satisfação em seu rosto. Via o que eu estava vendo. Sentia o que eu estava sentido. Uma cena de cinema que só nós estávamos assistindo.

Sorriu.

Enquanto me aproximava, percebi que estava com fone de ouvido. Eu tinha certeza que estava escutando a nossa música. Sorriu daquele jeitinho só dele quando ouve a parte que canto todos os dias de manhã. E é incrível como nunca enjoa. Garanto que ele até reclamaria se algum dia não ouvisse, mesmo que do banheiro, o meu cantar desafinado. Da mesma música. Da mesma forma. Eu, a cada dia, enjôo mais de mim. Ele, a cada dia, me ama mais.

Parei e o fotografei. Mesmo sabendo que veria muitas cenas bonitas dele ainda, acreditei que precisava ter aquela registrada. Talvez pra que ele possa ver, em forma de fotografia, o quanto eu o amo. Já que ele mesmo diz que meu forte não é falar, nem demonstrar. Fala que eu penso só em mim e que tenho medo de demonstrar meus sentimentos porque já sofri um tanto. Enfatiza que nós vamos ser nós pra sempre e que não é pra eu me preocupar. Eu sei bem que ele não se importa de verdade com isso: diz que o que vale é estar ao meu lado. Soube desde o começo que é assim que eu sou. Diz que fala pro meu bem e que uma hora vou precisar liberar certas coisas daqui de dentro. Eu choro, ele diz que me ama. Eu choro mais.

Olhou para os lados e sentou. Largou a mochila surrada na areia e de lá tirou um livro. O livro que já leu várias vezes, mas que ainda o impressiona. Nos momentos em que menos espero, ele, de longe, pede atenção e lê um parágrafo. Em seguida, sem esperar que eu vá dizer alguma coisa, solta um frase – nunca a mesma – do tipo “nossa, esse cara é foda” ou “meu, eu quero ser ele quando crescer”. Acho maravilhoso esse jeito dele de “always seriously joking”, como diz aquela música que toca naquele filme.

Estava a menos de dois metros dele quando, sem deixar de olhar pro livro, tirou os fones e disse:

- Eu te senti. Há quanto tempo tu tá me observando, hein, amorinho?

E, com aquele sorriso só dele estampado no rosto, olhou pra mim como se eu fosse a única pessoa no mundo inteiro.

Levantou e me abraçou como se não me visse há anos. De leve, senti um dos fones no meu ouvido. E, no outro, sussurrou:

- Escuta só, tá no repeat.

“E até quem me vê lendo o jornal na fila do pão sabe que eu te encontrei”.

- Tava com saudade, pequena.


Acordei, acendi um cigarro e fui preparar o café.

A noite ontem foi longa e o dia já parece que nunca vai acabar.

Ainda não tirei as fotografias da parede. Ainda leio o mesmo livro debaixo da mesma árvore ouvindo, no repeat, a mesma música.

Há três anos e a mesma rotina de vê-lo na fila do pão sabendo que ele a encontrou.